A INTELECTUAL ÂNGELA RODRIGUES , ESCREVEU !LEIAM!É SHOW !!

PRECISAMOS REENCONTRAR O SILÊNCIO

Ângela Rodrigues Gurgel

Autora de Ensaio Poético e Confissões Crônicas, uma das idealizadoras da confraria Café & Poesia.

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Todos nós precisamos de um tempo para arrumarmos as nossas gavetas e porões. Um tempo para abrir a janela que revela o mundo além de nossos muros. Um tempo para (re)avaliar tudo que estamos incorporando à nossa história e separar o que, de fato, nos pertence(?) e o que estamos levando apenas por hábito ou comodismo. Um tempo que nos permita silenciar para ouvir apenas o som dos nossos pensamentos. Sim, estamos carentes de silêncio. Há muito barulho lá fora e, aqui dentro, ecoam os gritos de euforia, de tristeza ou de dor. Precisamos, pois, de um momento para não dizer nada, para ouvir nossos pensamentos, amadurecer as ideias e, só então, avaliar se temos algo interessante a dizer.

Seria algo parecido com o que Freud chamava a “evolução silenciosa”. Um tempo de espera onde, embora não pareça, muitas coisas acontecem; afinal, o tempo não para e cada minuto é carregado de múltiplas e diversas sensações que tecem as linhas que desenham o mapa de nossa caminhada. Na tessitura silenciosa dos dias nascem as palavras que criam a poesia e inventam o texto – prosa ou poema elas não têm nenhuma preocupação em seguir as regras gramaticais. Querem apenas registrar o que sentem. Resgatar memórias e criar cumplicidade entre quem lê e escreve. Estabelecer uma conexão entre o silêncio do leitor e do escritor.

Em tempos em que a comunicação é cada vez mais rápida não temos tido tempo para assimilar todas as informações que recebemos. Há muita informação e pouca comunicação. Falamos, mas não expressamos nossos pensamentos; escutamos, mas não ouvimos o que o outro diz. Há muito ruído, muito barulho e pouco harmonia nos sons que chegam até nós. Precisamos, a exemplo de Mia Couto, de afinar nossos silêncios. Segundo ele “todo o silêncio é música em estado de gravidez”. Assim, vez por outra, precisamos ser “afinadores de silêncios” e exercitar a arte de “tecer os delicados fios com que se fabrica a quietude” deixando brotar um silêncio capaz de nos ensinar um novo jeito de olhar o outro e a nós mesmos.

É preciso deixar o silêncio traduzir nosso encantamento pela vida e, só depois, verbalizar as belezas por ele reveladas. Deixar que o silêncio fotografe a vida, tantas vezes vestida de barulhos, e traduza toda grandeza tantas vezes ignoradas pelas palavras que lançamos apressadamente sobre o papel. Engana-se quem pensa que o silêncio é algo abstrato. Inatingível. O poeta Manoel de Barros conta-nos um pouco sobre a “concretude” desse silêncio, tão necessário quanto revelador, em sua poesia “O Fotógrafo”:

Difícil fotografar o silêncio.

Entretanto tentei. Eu conto:

Madrugada a minha aldeia estava morta.

Não se ouvia um barulho,

ninguém passava entre as casas.

Eu estava saindo de uma festa.

Eram quase quatro da manhã.

Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.

Preparei minha máquina.

O silêncio era um carregador?

Estava carregando o bêbado.

Fotografei esse carregador.

Tive outras visões naquela madrugada.

Preparei minha máquina de novo.

Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.

Fotografei o perfume.

Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.

Fotografei a existência dela.

Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.

Fotografei o perdão.

Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.

Fotografei o sobre.

Foi difícil fotografar o sobre.

Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.

Representou para mim que ela andava na aldeia de

braços com Maiakovski – seu criador.

Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.

Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa

mais justa para cobrir a sua noiva.

A foto saiu legal.

(Manoel de Barros)